terça-feira, 21 de outubro de 2008

Será que se vestem?

Acordar de manhã para este mundo cansado e sentir o peso da vida a apertar-me a laringe. O engolir em seco, o contraste dos ombros frios com o peito suado, a almofada moldada ao meu crâneo de forma demasiado perfeita, o sentir do vazio, o quarto, a Terra, o Universo!.. Levantar, tenho de me levantar, sacudir o mais puro ser, vestir o fato do quotidiano, o sorriso, a vida despreocupada. Escovar os dentes e sentir-me aliviado por recordar a rapariga do anúncio do dentrífico. O anúncio estudado e de imagens trabalhadas a computador no qual a cara da rapariga aparece sem qualquer sinal, sem imperfeições, sem nome, sem rosto humano, apenas algo ideal, ninguém, mas ainda assim confortável para muitas pessoas – será que elas também se vestem todas as manhãs?

Se o fazem não aparentam dado os seus problemas serem tão reais, tão facilmente partilháveis com um vizinho, um colega de trabalho ou até um perfeito estranho que partilha o mesmo estabelecimento comercial. Invejo-as e tenho pena ao mesmo tempo. Suponho que o recíproco seja apenas estranhesa. Não! Indiferença.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Aventura

Um excerto d'A Náusea de Jean-Paul Sartre:

"Decididamente, o sentimento de aventura não vem dos acontecimentos: a prova está tirada. É antes a maneira como os instantes se encadeiam. Eis, creio eu, o que se passa: bruscamente sente-se que o tempo corre, que cada instante conduz a outro instante, esse outro a um terceiro, e assim sucessivamente; que todos os instantes se aniquilam, que é inútil tentar rever algum, etc., etc. E então atribui-se essa propriedade aos acontecimentos que nos aparecem dentro dos instantes; o que pertence à forma é trasladado para o conteúdo. Em suma, esse famoso correr do tempo, fala-se muito dele, mas quase não se vê. Vê-se uma mulher, pensa-se que será velha um dia, somente não a vemos envelhecer. Mas em certos instantes, parece que a vemos envelhecer e que nos sentimos envelhecer com ela: é o sentimento de aventura.
Chama-se a isso, se bem me lembro, a irreversibilidade do tempo. O sentimento de aventura seria, muito simplesmente, o da irreversibilidade do tempo. Mas porque é que não o vemos constantemente? O tempo não será constantemente irreversível? Há momentos em que podemos fazer o que queremos - ir para diante ou voltar para trás, que tanto faz uma coisa como outra; e há outros em que se diria que as malhas se apertaram, e, nesse caso, impõe-se não falhar a cartada, porque a ocasião não se repetiria."